terça-feira, 19 de março

Uma cartilha de disciplina eclesiástica

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O que você pensaria de um treinador que instrui os seus jogadores, mas nunca os faz exercitarem-se? Ou de um professor de matemática que explica a lição, mas nunca corrige os erros de seus alunos? Ou de um médico que fala sobre saúde, mas ignora um câncer?

Você provavelmente diria que todos eles estão fazendo apenas metade do seu trabalho. Treinamento atlético requer instruir e exercitar. Ensino requer explicar e corrigir. Medicina requer encorajar uma vida saudável e tratar a doença. Correto?

Então, o que você pensaria de uma igreja que ensina e discipula, mas não pratica a disciplina eclesiástica? Isso faz sentido para você? Eu presumo que faça sentido para muitas igrejas, porque toda igreja ensina e discipula, mas pouquíssimas praticam a disciplina eclesiástica. O problema é que fazer discípulos sem disciplina faz tanto sentido quanto um médico que ignora tumores.

Eu compreendo a relutância em praticar a disciplina eclesiástica. É um assunto difícil por uma série de razões. Ainda assim, essa relutância em praticar a disciplina eclesiástica, uma relutância que muitos de nós provavelmente sentem, pode sugerir que nós nos achamos mais sábios e mais amorosos do que Deus. Deus, afinal, “corrige o que ama” e “açoita a qualquer que recebe por filho” (Hb 12.6, ARC). Sabemos mais do que Deus?

Deus disciplina seus filhos para o bem de sua vida, crescimento e saúde: “Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade” (Hb 12.10). Sim, é doloroso, mas vale a pena: “Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11). Um fruto de justiça e paz! Essa é uma linda imagem.

A disciplina eclesiástica, em última instância, conduz ao crescimento da igreja, assim como podar uma roseira faz que ela dê mais frutos. Dizendo de outra maneira, a disciplina eclesiástica é um aspecto do discipulado cristão. Observe que as palavras “discípulo” e “disciplina” são primas etimológicas. Ambas as palavras são tomadas do campo da educação, o qual envolve ensino e correção. Não surpreendentemente, há uma prática antiga de referir-se a “disciplina formativa” e “disciplina corretiva”.

Meu alvo nesta cartilha é introduzir o leitor aos aspectos básicos da disciplina eclesiástica corretiva – o “quê”, o “quando”, o “como”, e algumas palavras a mais sobre o “porquê”.

O que é disciplina eclesiástica?

O que é disciplina eclesiástica corretiva? Disciplina eclesiástica é o processo de corrigir o pecado na vida da congregação e dos seus membros. Isso pode significar corrigir o pecado por meio de uma admoestação feita em particular. E pode significar corrigir o pecado ao remover formalmente um indivíduo da membresia. A disciplina eclesiástica pode ser feita de uma série de maneiras, mas o alvo é sempre corrigir as transgressões da lei de Deus entre o povo de Deus.

Não retributiva, mas terapêutica, profética e proléptica

Essa correção do pecado não é um ato retributivo; não é a execução da justiça de Deus, per se. Em vez disso, é terapêutica, profética e proléptica. Por terapêutica, quero dizer que a disciplina é designada para ajudar o cristão individual e a congregação a crescerem em piedade – em semelhança a Deus. Se um membro da igreja é dado a fofocas ou calúnias, outro membro deveria corrigir o pecado de modo que o fofoqueiro irá parar de fofocar e, ao invés disso, passar a falar palavras de amor. Deus não usa suas palavras para ofender sem razão, tampouco o seu povo deveria fazê-lo.

Ao dizer que a disciplina eclesiástica é profética, quero dizer que ela faz brilhar a luz da verdade de Deus sobre o erro e o pecado. Ela expõe o câncer na vida de um indivíduo ou do corpo, de modo que o câncer possa ser arrancado. O pecado é um mestre dos disfarces. A fofoca, por exemplo, gosta de usar a máscara da “preocupação piedosa”. O fofoqueiro pode pensar que suas palavras são moderadas, generosas até. Contudo, a disciplina eclesiástica expõe o pecado como ele é. Ele expõe o pecado tanto para o pecador como para os demais envolvidos, de modo que todos podem aprender e beneficiar-se.

Ao dizer que a disciplina eclesiástica é proléptica, quero dizer que ela é uma pequena figura do julgamento, no presente, que alerta sobre um julgamento muito maior por vir (p. ex. 1Co 5.5). Esse alerta não é outra coisa senão gracioso. Suponha que um professor dê notas acima da média para um aluno ao longo do semestre, embora suas provas merecessem notas abaixo da média, com medo de desencorajá-lo; então, no final do semestre, o professor reprova o aluno. Isso não seria gracioso! Do mesmo modo, a disciplina eclesiástica é uma maneira amorosa de dizer a um indivíduo pego em pecado: “Cuidado, uma penalidade muito maior sobrevirá se você continuar nesse caminho. Por favor, volte atrás agora.”. Não é surpreendente que as pessoas não gostem da disciplina. É difícil. Mas quão misericordioso é Deus em avisar o seu povo do grande julgamento por vir, de modos comparativamente menos severos!

Fundamentos bíblico-teológicos

Por trás da disciplina eclesiástica está um dos projetos primordiais da história redentiva – o projeto de restaurar o povo caído de Deus ao lugar onde eles irão, mais uma vez, refletir a imagem de Deus à medida que estendem o seu governo benevolente e vivificador por toda a criação (Gn 1.26-28; 3.1-6).

Adão e Eva deveriam refletir a imagem de Deus. Assim também o reino de Israel. Contudo, a falha de Adão e Eva em representar o governo de Deus, impelida pelo desejo de governar em seus próprios termos, resultou no seu exílio do lugar de Deus, o Jardim. A falha semelhante de Israel em guardar a lei de Deus e refletir o caráter de Deus às nações também resultou em um exílio.

Como criaturas feitas à imagem de Deus, nossas ações intrinsecamente falam sobre ele, como espelhos representando o objeto com o qual se deparam. O problema é que a humanidade caída distorce a imagem de Deus, como espelhos de superfície ondulada. Uma vez que a humanidade caída fala mentiras, por exemplo, o mundo conclui que as próprias palavras de Deus não são confiáveis. Ele, também, deve ser um mentiroso.Tal é a criatura, tal deve ser o seu criador.

Ainda bem que um filho de Adão, um filho de Israel de fato guardou a lei de Deus perfeitamente; o mesmo a quem Paulo descreveria como “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15). Agora, aqueles que estão unidos a esse Filho são chamados a carregarem essa mesma “imagem”, o que nós aprendemos a fazer por meio da vida da igreja, “de um degrau de glória a outro” (ver 2Co 3.18); Rm 8.29; 1Co 15;49; Cl 3;9-10).

Igrejas locais deveriam ser aqueles lugares na terra aonde as nações podem ir para encontrar humanos que crescentemente refletem a imagem de Deus de modo verdadeiro e honesto. À medida que o mundo contempla a santidade, o amor e a unidade em igrejas locais, ele irá conhecer melhor como Deus é e irá render-lhe louvor (p. ex. Mt 5.14-16; Jo 13.34-35; 1Pe 2.12). A disciplina eclesiástica, então, é a resposta da igreja quando um dos seus falha em representar a santidade, o amor e a unidade de Deus, desobedecendo a Deus. É um esforço para corrigir falsas imagens à medida que elas se levantam na vida do corpo de Cristo, quase como polir manchas de sujeira para removê-las de um espelho.

Passagens específicas

Jesus concede a congregações locais a autoridade para disciplinar os seus em Mateus 16.16-19 e 18.15-20. O poder das chaves para ligar e desligar na terra, primeiro mencionado em Mateus 16.18, é entregue à congregação local em Mateus 18.15-20, o que consideraremos mais cuidadosamente adiante. Paulo descreve o processo da disciplina eclesiástica em uma variedade de lugares, incluindo 1Coríntios 5, 2Coríntios 2.6, Gálatas 6.1, Efésios 5.11, 1Tessalonicenses 5.14, 1Timóteo 5.19-20, 2Timóteo 3.5 e Tito 3.9-11.

João se refere a um tipo de disciplina em 2João 10. Judas parece tê-la em mente em Judas 22 e 23. Mais exemplos poderiam ser mencionados. De fato, a disciplina eclesiástica é o que Jesus e os autores bíblicos têm em mente cada vez que eles dizem aos seus ouvintes que corrijam o pecado em suas vidas conjuntamente.

Quando uma igreja deveria praticar disciplina?

Quando uma igreja deveria praticar disciplina? A resposta curta é: quando alguém peca. Mas a resposta pode diferir a depender de estarmos falando em disciplina eclesiástica informal ou formal, para usar a distinção de Jay Adams entre confrontações feitas em particular e confrontações feitas publicamente, perante a igreja.

Todo pecado, seja ele de natureza grave ou não grave, deve evocar uma repreensão privada entre dois irmãos ou irmãs na fé. Não significa dizer que nós deveríamos repreender todo e cada pecado que um companheiro membro de igreja comete. Significa simplesmente que todo pecado, não importa quão pequeno, está no domínio do que dois cristãos podem  amorosamente trazer à tona um ao outro em uma conversa privada, a ser avaliado com prudência.

Quando nos voltamos para a questão de quais pecados requerem disciplina corretiva formal ou pública, precisamos avançar com um pouco mais de cuidado.

Listas bíblicas

Alguns dos teólogos mais antigos apresentaram listas de quando é apropriado proceder à disciplina formal. Por exemplo, o ministro congregacional John Angell James afirmou que cinco tipos de ofensas deveriam ser disciplinadas: (i) todos os vícios escandalosos e imoralidades (p. ex. 1Co 5.11-13); (ii) a negação da doutrina cristã (p. ex. Gl 1.8; 2Tm 2.17-21; 1Tm 6.35; 2Jo 10ss.); (iii) o surgimento de divisões (Tt 3.10); (iv) a falha em prover o sustento de parentes próximos quando eles se encontrem em necessidade (p. ex. 1Tm 5.8); (v) e inimizades não reconciliadas (p. ex. Mt 18.7). [1]

Esse tipo de lista bíblica pode ajudar até certo ponto. Observe que cada um dos pecados descritos é sério e possui uma manifestação exterior. Eles não são apenas pecados interiores, do coração; eles podem ser vistos com os olhos ou ouvidos com os ouvidos. E nessa manifestação exterior eles enganam tanto o mundo como outras ovelhas acerca do Cristianismo.

Contudo, essas listas falham em abranger a vasta multidão de pecados que as Escrituras jamais abordam (o que dizer do aborto?). Além disso, textos sobre disciplina eclesiástica podem mencionar apenas um pecado particular, tal como 1Coríntios 5, que discute o pecado de deitar-se com a mulher de seu pai; mas é evidente que Paulo não está dizendo às igrejas para disciplinar apenas aquele pecado. Como as igrejas deveriam partir desses exemplos para outros pecados?

Exterior, sério e impenitente

Uma maneira de resumir os dados bíblicos é dizer que a disciplina eclesiástica formal é necessária em casos de pecado exterior, sério e impenitente. Um pecado deve ter uma manifestação exterior. Ele deve ser algo que pode ser visto com os olhos ou ouvido com os ouvidos. As igrejas não deveriam rapidamente balançar a bandeira vermelha da expulsão cada vez que suspeitassem haver avareza ou orgulho no coração de alguém. Não é que esses pecados do coração não sejam sérios. É que o Senhor sabe que nós não podemos ver o coração uns dos outros, e que os verdadeiros problemas do coração irão, de todo modo, emergir para a superfície no final (1Sm 16.7; Mt 7.17ss.; Mc 7.21).

Segundo, um pecado deve ser sério. Por exemplo, eu posso perceber que um irmão exagerou os detalhes de uma história e então, em particular, confrontá-lo acerca da questão. Mas, mesmo que ele negue o fato, eu provavelmente não o levaria à frente da igreja. Por que não? Primeiro, algo como esse pecado de florear histórias está enraizado em pecados muito mais significativos e ocultos, como idolatria e autojustificação. Esses são os pecados com os quais eu quero gastar tempo discutindo pessoalmente com ele. Segundo, perseguir cada pecadilho na vida de uma igreja provavelmente levará à paranoia e impelirá a congregação ao legalismo. Terceiro, claramente deve haver um lugar para o amor que “cobre uma multidão de pecados” na vida de uma congregação (1Pe 4.8). Nem todo pecado deveria ser perseguido até as últimas consequências. Graciosamente, Deus não agiu assim conosco.

Em último lugar, a disciplina eclesiástica formal é o curso de ação apropriado quando o pecado é impenitente. A pessoa envolvida em um pecado sério foi confrontada em particular com os mandamentos de Deus na Escritura, mas ele ou ela se recusa a abandonar o pecado. Tudo indica que a pessoa valoriza o pecado mais do que Jesus. Pode haver um tipo de exceção a isso, a qual consideraremos adiante.

Todos os três fatores estavam em jogo na minha primeira experiência com a disciplina eclesiástica corretiva. Aconteceu de a pessoa em questão ser um bom amigo e um companheiro próximo. Contudo, tanto eu como a igreja estávamos cegos para o fato de que ele estava envolvido em um estilo de vida de pecado sexual, ao menos até ele me contar, um dia, enquanto almoçávamos. Imediatamente, perguntei-lhe se ele sabia o que a Bíblia afirma acerca daquela atividade, e ele sabia. Contudo, ele disse que estava em paz com Deus. Eu o instei para que se arrependesse. Outros também o fizeram. Mas ele dizia a mesma coisa a todos nós: “Deus não está incomodado com isso”. Após alguns meses de conversas como essa, a igreja formalmente o removeu da sua comunhão. O pecado dele era sério, impenitente e tinha uma clara manifestação exterior. Ele iria enganar outros, tanto na igreja como fora dela, sobre o que significa ser um cristão. A igreja passou vários meses em busca desse homem. Nós o amávamos. Nós queríamos que ele se voltasse do seu pecado para conhecer que Jesus é mais valioso do que qualquer coisa oferecida por este mundo. Ainda assim, fica claro quase imediatamente que ele não tinha intenção de voltar atrás. Ele estava resoluto. Diante da escolha entre seu pecado e a Palavra de Deus, ele escolheu o pecado. Então a igreja agiu formalmente.

Como uma igreja deveria praticar a disciplina?

Como uma igreja deveria praticar a disciplina eclesiástica? Jesus apresenta o esboço básico em Mateus 18.15-17. Ele diz aos seus discípulos:

Se teu irmão pecar [contra ti], vai argüi-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano.

Observe aqui que a ofensa começa entre dois irmãos, e a resposta não deveria ir além do que é necessário para produzir reconciliação. Jesus descreve o processo em quatro passos.

Quatro passos básicos

1. Se um problema de pecado pode ser resolvido entre duas pessoas por elas mesmas, então o caso está encerrado.

2. Se ele não pode ser resolvido, então o irmão ofendido deveria trazer dois ou três outros “para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça” (Mt 18.16). Jesus toma essa frase de Deuteronômio 19, a qual, no contexto, é designada para proteger as pessoas contra falsas acusações. Com efeito, Deuteronômio exige uma “investigação cuidadosa” sempre que haja qualquer dúvida acerca do crime (Dt 19.18, NTLH). Eu entendo que Jesus, do mesmo modo, está dizendo que os cristãos devem preocupar-se com a verdade e a justiça, o que pode exigir a devida diligência. As duas ou três testemunhas devem poder confirmar que, de fato, há uma ofensa séria e exterior e que, de fato, o ofensor é impenitente. Esperançosamente, envolver outras pessoas irá ou chamar o ofensor de volta à razão ou ajudar o ofendido a ver que ele não deveria estar tão ofendido. Tanto este passo como o anterior podem ser executados ao longo de vários encontros, tantos quantos as partes acharem prudente realizar.

3. Se a intervenção dos dois ou três não levar a uma solução, a parte ofendida é então instruída a dizê-lo à igreja (Mt 18.7a). Na minha própria congregação, isso é comumente feito por intermédio dos presbíteros, uma vez que o Senhor deu presbíteros à igreja para a supervisão de todas as questões da igreja (1Tm 5.17; Hb 13.17; 1Pe 5.2). Os presbíteros anunciarão o nome da parte acusada do pecado exterior, sério e impenitente. Elas fornecerão uma brevíssima descrição do pecado, uma descrição apresentada de modo a não causar escândalo a outros nem constranger indevidamente algum membro da família. E, comumente, eles então darão dois meses para que a congregação busque o pecador e o chame ao arrependimento.

4. O passo final da disciplina eclesiástica é a exclusão da comunhão ou membresia da igreja, o que essencialmente significa exclusão da Mesa do Senhor: “E, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano” (Mt 18.17b). Ele deve ser tratado como alguém de fora do povo da aliança de Deus, alguém que não deve ter parte na refeição da aliança de Cristo (embora ele provavelmente será encorajado a continuar frequentando as reuniões da igreja; ver discussão adiante). A nossa própria congregação dará esse passo assim que os dois meses tenham expirado e o indivíduo tenha se recusado a abandonar o pecado. Dois meses é um número arbitrário, é claro; ele simplesmente representa uma programação básica que corresponde às assembleias de membros regularmente agendadas em nossa igreja. Em qualquer situação concreta, a igreja pode reputar necessário acelerar ou retardar essa programação.

Por que acelerar ou retardar o processo?

Algumas vezes, os processos de disciplina deveriam avançar mais lentamente. Esse é o caso, por exemplo, quando um pecador apresenta ao menos algum interesse em lutar contra o seu pecado. Não é apenas a natureza do pecado que deve ser considerada, mas também a natureza do próprio pecador. Pecadores diferentes, falando de modo grosseiro, exigem estratégias diferentes. Como Paulo instrui: “admoesteis os insubmissos, consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos” (1Ts 5.14). Algumas vezes, não fica imediatamente claro se as pessoas são indolentes ou indiferentes ao seu pecado, ou se elas estão genuinamente fracas.

Eu me lembro de uma vez lidar com um irmão envolvido em um tipo de vício; por algum tempo, eu não estava certo se ele estava apenas dando desculpas por seus desvios morais ou se a sua alma estava verdadeiramente enfraquecida e deformada por anos de pecado, tornando muito mais difícil para ele parar de pecar. A resposta a esse tipo de dúvida deveria afetar quão rapidamente os processos de disciplina avançam.

Algumas vezes, os processos de disciplina precisam ser acelerados, o que pode significar pular um ou dois dos passos descritos por Jesus em Mateus 18. Duas claras permissões bíblicas para acelerar os processos de disciplina são (i) divisão na igreja e (ii) escândalo público (i.e., pecado que representará Cristo de modo enganoso na comunidade além da igreja). No tocante à primeira categoria, Paulo diz: “Se uma pessoa causar divisões entre os irmãos na fé, aconselhe essa pessoa uma ou duas vezes; mas depois disso não tenha nada mais a ver com ela” (Tt 3.10, NTLH). Não fica inteiramente claro que tipo de processo Paulo tem em mente aqui. Mas suas palavras de fato sugerem que a igreja deveria responder rápida e decisivamente aos causadores de divisão, para o bem do corpo.

Um processo ainda mais rápido é apresentado em 1Coríntios 5, no qual Paulo convoca a igreja a remover imediatamente um indivíduo sabidamente envolvido em um pecado publicamente escandaloso, isto é, um pecado que até mesmo a comunidade de não-cristãos desaprova. Na verdade, Paulo sequer diz à igreja para alertar o homem de modo que ele pudesse ser trazido ao arrependimento. Ele simplesmente os diz que “entreguem esse homem a Satanás” (v. 5a, NTLH).

Por que pular a questão do arrependimento e não dar ao homem uma segunda chance? Não é que Paulo esteja desinteressado em arrependimento ou segundas chances. Ao contrário, ele diz à igreja para remover o homem de modo que o seu “espírito seja salvo no Dia do Senhor” (v. 5b). Certamente, Paulo está aberto a receber o homem de volta à igreja, caso ele de fato demonstre arrependimento (cer 2Co 2.5-8). Mas o ponto é que o seu pecado é publicamente conhecido e faz uma declaração pública sobre Cristo. Portanto, a igreja deveria responder com uma declaração igualmente pública perante o mundo: “Inaceitável! Cristãos não agem assim!”.

Havendo dito isso, é importante observar que em 1Coríntios 5 não havia qualquer dúvida se o homem estava ou não envolvido em pecado. Era um fato incontestável. Todavia, se há alguma dúvida sobre se um pecado ocorreu ou não, ainda que seja um pecado escandaloso, a igreja deveria parar por tempo o suficiente para realizar uma investigação cuidadosa, como Jesus requer em Mateus 18. Por exemplo, uma igreja não quer disciplinar alguém por desvio de verbas públicas (um pecado publicamente escandaloso) baseada em boatos, apenas para virem os tribunais seculares extinguirem o processo três meses depois, por falta de provas.

Quais são então as duas considerações que podem levar uma igreja a acelerar os processos de disciplina? Uma igreja pode reputar sábio agir mais rapidamente quando (i) há uma ameaça imediata à unidade do corpo ou da comunidade da igreja, ou (ii) há um pecado que pode trazer grande dano ao nome de Cristo na comunidade. Não há uma fórmula exata para estabelecer quando uma dessas fronteiras é ultrapassada, e uma igreja faz bem em designar uma pluralidade de presbíteros piedosos para supervisionar essas questões difíceis.

Frequência e restauração

Membros de igreja frequentemente perguntam se uma pessoa que tenha sido excluída da membresia e da Mesa do Senhor pode continuar a frequentar as reuniões semanais da igreja, bem como têm dúvidas sobre como devem interagir com ela durante a semana. O Novo Testamento aborda essa questão em vários lugares (1Co 5.9,11; 2Ts 3.6,14-15; 2Tm 3.5; Tt 3.10; 2Jo 10), e diferentes circunstâncias podem também exigir respostas diferentes. Mas a instrução dada pelos presbíteros na minha própria igreja geralmente contém dois pontos:

  • Exceto em situações nas quais a presença da parte impenitente seja uma ameaça física à congregação, uma igreja deveria considerar bem-vinda a frequência da pessoa à reunião semanal. Não há lugar melhor para a pessoa estar do que sentado sob a pregação da Palavra de Deus.
  • Embora os membros da família do indivíduo disciplinado certamente devam continuar a cumprir as obrigações bíblicas da vida familiar (p.ex. Ef 6.1-3; 1Tm 5.8; 1Pe 3.1-2), o teor dos relacionamentos dos membros da igreja com o indivíduo disciplinado deveria mudar notadamente. As interações não deveriam ser caracterizadas pela casualidade ou afabilidade, mas por conversas deliberadas sobre arrependimento.

A restauração à comunhão da igreja ocorre quando há sinais de verdadeiro arrependimento. O modo como o verdadeiro arrependimento se apresenta depende da natureza do pecado. Algumas vezes, arrependimento é uma questão de preto no branco, como quando um homem abandona a sua esposa. Para ele, arrepender-se significa voltar para ela, simples e óbvio. Contudo, algumas vezes, arrependimento não significa tanto vencer um pecado completamente, mas sobretudo demonstrar uma nova diligência em fazer guerra contra o pecado, como quando uma pessoa é pega em um quadro de vício.

Claramente, a questão do verdadeiro arrependimento é um assunto difícil que exige muita sabedoria. Cautela deve ser equilibrada com compaixão. Pode ser necessário algum tempo para que o arrependimento seja demonstrado por seus frutos, mas não muito tempo (ver 2Co 2.5-8). Uma vez que uma igreja tenha decidido restaurar um indivíduo arrependido à sua comunhão e à Mesa do Senhor, não há que se falar em um período probatório ou uma cidadania de segunda classe. Em vez disso, a igreja deveria anunciar publicamente o seu perdão (Jo 20.23), afirmar o seu amor pelo indivíduo arrependido (2Co 2.8) e celebrar (Lc 15.24).

Por que uma igreja deveria praticar a disciplina eclesiástica?

À medida que uma igreja começa a praticar a disciplina eclesiástica, ela frequentemente se verá diante de situações da vida real que são complexas e não têm um “estudo de caso” exato na Escritura para ajudá-la a examinar as diversas facetas das circunstâncias. Nem sempre estará claro se a disciplina eclesiástica formal é necessária, ou quanto tempo o processo deve durar, ou se a parte culpada está verdadeiramente arrependida, e assim por diante.

À medida que uma congregação e os seus líderes lidam com essas questões complexas, eles devem se lembrar de que a igreja é chamada, acima de tudo o mais, a guardar o nome e a glória de Cristo. Fundamentalmente, a disciplina eclesiástica diz respeito à reputação de Cristo e se uma igreja pode ou não continuar a confirmar a profissão verbal feita por alguém cuja vida odiosamente representa Cristo de modo enganoso. Os pecados e as circunstâncias do pecado variarão em grande medida, mas esta questão sempre deve encabeçar os pensamentos de nossas igrejas: “Como o pecado deste pecador e a nossa resposta a ele irão refletir o santo amor de Cristo?”.

No fim das contas, preocupar-se com a reputação de Cristo é preocupar-se com o bem dos não-cristãos. Quando as igrejas falham em praticar a disciplina eclesiástica, elas começam a se parecer como o mundo. Elas se tornam como o sal que perdeu o seu sabor, o qual serve apenas para ser pisado pelos homens (Mt 5.13). Quando isso acontece, não há qualquer testemunho a ser dado a um mundo perdido em trevas.

Do mesmo modo, preocupar-se com a reputação de Cristo é preocupar-se com os outros membros da igreja. Os cristãos deveriam desejar parecer-se com Jesus, e a disciplina eclesiástica ajuda a manter clara essa santa imagem. Os membros são lembrados de tomar ainda mais cuidado com suas próprias vidas sempre que um ato formal de disciplina acontece. O congregacional James o resume bem: “As vantagens da disciplina são óbvias. Ela recupera os desviados, detecta os hipócritas, faz circular um temor saudável pela igreja, fornece um incentivo adicional para a vigilância e a oração, demonstra cabalmente o fato e as consequências da fragilidade humana e, além disso, testifica publicamente contra a impiedade”. [2]

Por fim, preocupar-se com a reputação de Cristo é preocupar-se com o indivíduo pego em pecado. Em 1Coríntios 5, Paulo sabia que o curso de ação mais amoroso era excluir o homem da congregação “a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor” (1Co 5.5).

Por que uma igreja deveria praticar a disciplina? Pelo bem do indivíduo, o bem dos não-cristãos, o bem da igreja e a glória de Cristo. [3] Ter esses alvos em mente ajudará as igrejas e os presbíteros a avançarem de um caso difícil para outro, sabendo que a sabedoria e o amor de Deus prevalecerão mesmo quando a nossa sabedoria e o nosso amor falharem.

Notas:

1. John Angell James, Church Fellowship or The Church Member’s Guide, extraído do volume XI da 10ª edição de Works of John Angell James, p. 53.
2. James, Christian Fellowship, p. 53.
3. Ver Mark Dever, Nine Marks of a Healthy Church (Crossway, 2004), 174-78 [N.T.: Publicado no Brasil pela Editora Fiel, com o título Nove Marcas de Uma Igreja Saudável].


Autor: Jonathan Leeman

Jonathan Leeman é graduado em Jornalismo, possui mestrado em Divindade pelo Southern Baptist Seminary (EUA) e Ph.D. em Eclesiologia. É diretor de comunicação do Ministério 9Marks.

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