sexta-feira, 29 de março

Missões e sofrimento

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Somos de uma cultura de direitos. Os ocidentais, em geral, e os americanos, em específico, são criados para acreditar que seus direitos são invioláveis e que a vida lhes deve algo. Os nossos direitos perceptíveis vão muito além dos direitos básicos de liberdade de religião, de expressão e de reunião. Afinal de contas, a Declaração de Independência Americana diz que todos têm o direito inalienável de buscar a felicidade; e isso é facilmente traduzido, na mente das pessoas, como direito à própria felicidade. Na cultura ocidental, confronto, conveniência e segurança se tornaram a experiência de vida normal para a vasta maioria das pessoas. Em tal ambiente, não é surpresa que estas coisas tenham chegado a ser consideradas como direitos inegociáveis. Além disso, numa cultura materialista adversa ao conceito de transcendência, valores como conforto, conveniência e segurança parecem ser cruciais para a maioria das pessoas. Esses valores sobrepujam tudo mais. Qualquer coisa que ameaça ou perturba a experiência destas coisas é vista automaticamente como má.

Essa maneira de pensar penetrou na igreja cristã. Os evangélicos ocidentais cantam sobre amar a Jesus mais do que sobre qualquer outro assunto ou outra coisa. Todavia, o compromisso deles permanece frequentemente dentro do contexto de expectativas determinadas culturalmente. Como ocidentais, eles consideram inconscientemente, como muitos outros, segurança e conforto como seus valores mais importantes; por isso, eles constroem seu entendimento da vida de discipulado dentro desses parâmetros. A supremacia destes interesses parece tão autoevidente que nem mesmo ocorre a alguém examiná-los. Os evangélicos ocidentais simplesmente não pensam na possibilidade de que Deus exija deles algo que seja desconfortável ou inseguro, além do, talvez, desconforto brando de compartilharem o evangelho com alguém que se ofende no decorrer do processo.

Quando um evangelho centrado no homem é pregado, esta tendência se torna ainda mais visível. Quando pessoas ouvem que o alvo da salvação é satisfazer suas necessidades ou seus desejos por realização (ou mesmo dar-lhes uma “vida abundante” mal definida como “sua melhor vida agora”), não faz sentido alguém pensar que seguir a Jesus pode envolver sofrimento e perda. No entanto, mesmo em igrejas que mantêm um teocentrismo bíblico, esta aversão inconsciente ainda se mantém real. O sofrimento como uma parte normal da vida e um componente normal de seguir a Cristo não integra a agenda mental da maioria dos cristãos ocidentais. Quando os crentes seguem um caminho de obediência que envolve desconforto, eles são considerados heróis da fé incomuns. Quando esse caminho de obediência os coloca em um risco físico sério, são frequentemente tachados de fanáticos e considerados como potencialmente confusos. Mesmo no avanço da Grande Comissão, muitas igrejas e cristãos do Ocidente valorizam inconscientemente o dinheiro mais do que a obediência e supõem que Deus nunca pediria aos seus que arrisquem sua vida por amor à sua obra. Sofrer é visto como anormal, incomum e mau.

Nisto, assim como em muitas coisas, a experiência cultural do Ocidente está em desarmonia com a maior parte do mundo no decorrer da maior parte da História. A maior parte da raça humana não tem tido outra escolha, senão a de suportar sofrimento como uma ocorrência comum da vida. Sem os grandes escudos protetores que o Ocidente desfruta (tecnologia, medicina, sistemas de distribuição global de alimentos, paz interna e o governo da lei), a maior parte da raça humana tem vivido com a ameaça de doenças, fome, desastres naturais e violência humana, como uma condição normal. Até no Ocidente, embora o sofrimento seja restringido e ocultado, ele não pode ser eliminado verdadeiramente. Crimes ainda acontecem. Desastres naturais destroem comunidades inteiras, e crises econômicas aniquilam anos de economias numa noite. Podemos ter os melhores cuidados médicos do mundo, mas as pessoas ainda ficam doentes, e todos, por fim, morrem – às vezes, de maneira lenta e dolorosa. A diferença é que as pessoas do Ocidente se ofendem com o sofrimento, como se seus direitos fossem de algum modo violados por sua mera existência. O resto do mundo sabe que sofrer é apenas uma parte da vida.

É muito estranho que os cristãos ocidentais tenham essa visão reduzida do sofrimento. O sofrimento é um dos grandes temas da Bíblia. O fato de que os cristãos ocidentais não observam isso (ou supõem inconscientemente que o sofrimento não se aplica a eles) é um exemplo clássico de suposições culturais que afetam a interpretação da Escritura. Quer o observem, quer não, a Bíblia fala muito sobre sofrimento. Prestar atenção especial a coisas que aparecem proeminentemente na Palavra de Deus é um princípio correto de interpretação da Escritura. O evangelicalismo ocidental precisa desesperadamente recapturar uma teologia bíblica do sofrimento. Sem ela, faremos de nosso conforto e segurança um ídolo e marginalizaremos a nós mesmos no serviço da Grande Comissão.

A Bíblia fala sobre o sofrimento em várias categorias. O sofrimento existe em todos os lugares e sobrevém a todas as pessoas apenas porque este mundo é um mundo caído. Às vezes, o sofrimento acontece como consequência de mau comportamento, embora a Bíblia nos alerte contra o fazermos julgamento imediato nesses casos. O sofrimento é prometido especialmente àqueles que seguem a Jesus em um mundo que está em rebelião contra ele. E, de maneira mais intensa, o sofrimento está ligado à obra do avanço do evangelho. Em vez de considerar o sofrimento como totalmente mau, a Bíblia destaca benefícios e bênçãos que fluem do sofrimento. Por fim, a Bíblia dá instrução clara sobre como os crentes devem reagir quando o sofrimento lhes sobrevêm na sábia providência de Deus.

Sofrendo em um mundo caído

Vivemos num mundo bagunçado. A causa desta bagunça é a nossa rebelião contra Deus. Quando ele criou o mundo, ele viu que tudo era bom, e tudo permaneceu bom até que a raça humana parou de confiar em Deus e lhe desobedeceu. A queda de Adão e Eva no pecado introduziu alguma forma de sofrimento em cada área da vida. Imediatamente, o relacionamento conjugal deles foi corrompido, Adão procurou culpar Eva por seu próprio pecado, e o filho mais velho deles assassinou seu irmão mais novo. A primeira família foi também a primeira família disfuncional! Os poucos capítulos seguintes de Gênesis mostram a espiral descendente e rápida da depravação humana, chegando até ao ponto em que Gênesis 6.5 nos dá esta triste acusação: “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”. Como resultado da rebelião do homem, os relacionamentos dos seres humanos estão confusos. E os resultados incluem tudo, desde amizades destruídas e casamentos rompidos a assassinato e opressão. Toda pessoa que vive neste mundo caído está sujeita ao sofrimento apenas por causa da propensão inata das pessoas para ferirem umas às outras.

A queda afetou muito mais do que apenas os relacionamentos humanos. Ela corrompeu toda a ordem criada. Em Gênesis 3, Deus disse a Eva que sua dor no parto aumentaria grandemente e disse a Adão que sua sobrevivência dependeria de labor doloroso. Em Romanos 8, Paulo explicou que toda a criação está “sujeita à vaidade”, em “cativeiro da corrupção” e, “a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (Rm 8.18-22). Como resultado de nossa rebelião, este mundo se tornou um lugar de desastres naturais, e nossa vida é caracterizada por doença e morte. Terremotos, furacões, tornados, secas, inundações, fomes, deslizamentos de terra, câncer, doenças de coração e coisas semelhantes, tudo resulta do fato de que este é um mundo caído. Essas coisas atingem tanto o povo de Deus como aqueles que desafiam a Deus. Em sua Palavra, Deus nunca promete que seu povo será isento de qualquer destas características dolorosas de um mundo caído. Neste mundo bagunçado pelo pecado humano, coisas más acontecem a todas as pessoas.

Devido à gravidade do pecado, é admirável que as coisas não sejam piores. Nas operações da graça comum, Deus ainda provê bênçãos para os justos e, também, para os injustos. E o Espírito de Deus restringe o mal, para que as coisas não sejam tão más como poderiam ser. Em seu cuidado providencial, Deus protege, muitas vezes, o seu povo de desastres que poderiam ter acontecido. Todo crente tem um testemunho de maneiras pelas quais Deus o protegeu de dano potencial, e, muito provavelmente, no céu descobriremos inúmeras outras ocasiões em que Deus nos protegeu, quando nem mesmo percebemos. No entanto, ele nunca promete que sempre nos protegerá e não está sob qualquer obrigação de fazer isso. O sofrimento acontece apenas porque este é um mundo caído. Algumas pessoas experimentam menos sofrimento por causa do lugar em que vivem, e parte desta diferença pode ser atribuível ao impacto da Palavra de Deus na cultura, através do tempo. Todavia, cada pessoa está sujeita à possibilidade de desastres naturais ou crimes. Cada pessoa pode ter câncer ou doença de coração; por fim, cada pessoa morre. Estas formas de sofrimento vêm apenas porque o mundo é caído, e os sofrimentos não discriminam entre crentes e não crentes.

Sofrimento por fazermos o mal

O sofrimento vem, às vezes, como resultado de fazermos o mal. Algumas coisas são apenas as consequências naturais de desconsiderarmos as orientações dadas por Deus. Alcoolismo, abuso de drogas e glutonaria causam seu próprio dano natural na raça humana. Quando alguém comete um crime e é apanhado, sua punição subsequente vem como uma consequência legal do procedimento errado. Também é verdade que em certas passagens da Escritura (como as maldições pronunciadas em Deuteronômio 28), sofrimento e desastre são ligados diretamente, por Deus, à desobediência aos seus mandamentos. No entanto, a Escritura nos adverte contra estabelecermos muito rapidamente uma conexão entre o pecado de uma pessoa e o seu sofrimento. O livro de Jó, em específico, anula esta conexão. Os amigos de Jó estavam convencidos de que as tribulações de Jó eram, de algum modo, resultado de algum pecado que ele cometera. Jó protestou em sentido contrário, e, no final, Deus afirmou que Jó, e não os seus amigos, falara corretamente sobre este assunto. Jesus rejeitou a noção de que um homem nascido cego estava sendo punido por algum pecado dele mesmo ou de seus pais (Jo 9.1-3). E, quando lhe perguntaram sobre dois grupos de pessoas que haviam morrido – um grupo, por causa de opressão política, e outro, por causa da uma torre que caíra sobre eles -, Jesus insistiu em que eles não eram pecadores piores do que os outros que haviam escapado desses infortúnios. A coisa mais segura que podemos dizer é que fazer o mal não tem frequentemente as suas próprias consequências naturais, e Deus pode usar o sofrimento como uma chamada de despertamento para pessoas que estão seguindo o caminho errado; mas devemos dizer que raramente é sábio supor que, se uma pessoa está sofrendo, ela está sofrendo por causa de algum pecado específico que cometeu.

Sofrendo como cristão

Neste assunto, o pensamento da Escritura é diretamente contrário às expectativas culturais do evangelicalismo ocidental irrefletido. O Novo Testamento tanto pressupõe como afirma que o sofrimento é normal, é uma parte expectável do que significa seguir a Cristo. Em face do que a Bíblia diz sobre a condição caída do mundo, isto não deve ser uma surpresa para o crente. Em Jesus, Deus se tornou homem e viveu entre nós, e o mundo reagiu assassinando-o. Em vez de buscar a Deus, a humanidade caída o odeia e está tentando escapar dele. Se uma pessoa fala a pecadores rebeldes sobre o Deus verdadeiro ou expõe a autojustiça deles como a fraude que ela é, tal pessoa incorre no mesmo ódio que caiu sobre Jesus. Ele deixou clara a conexão: “Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” (Jo 15.20). Eles perseguiram a Jesus, logo, a conclusão deve ser óbvia. Em um mundo corrompido pelo pecado, é realmente verdadeiro que nenhuma obra boa fique sem punição. Paulo expressou isso quando disse: “Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2 Tm 3.12). Sob a inspiração do Espírito Santo, Paulo não disse “talvez sejam”, ele disse: “Serão”. Sofrer por amor a Cristo é entendido como uma dádiva: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele” (Fp 1.29). A palavra traduzida aqui por “foi concedida” vem da família da  palavra charis, no grego, e poderia ser traduzida por “foi presenteada”. A Bíblia nos diz que os apóstolos se regozijaram por terem sido considerados dignos de sofrer por causa do nome de Jesus (At 5.40-41). As igrejas em Jerusalém (At 8.1), na Galácia (Gl 3.4), em Filipos (Fp 1.29), em Tessalônica (1 Ts 2.14) e na Ásia Menor (1 Pe 4.12), todas experimentaram sofrimento, tal como os recipientes originais da Epístola aos Hebreus (Hb 10.32). Paulo atravessou sofrimento horrível (2 Co 11.23-29), como também os outros apóstolos (At 5-8). Na Escritura cristã, a chamada para seguir a Cristo é uma chamada para abandonar a tranquilidade, a segurança e o conforto deste mundo, a fim de tomar a cruz. Isto não é uma descrição de uma superfé extraordinária. É uma descrição bíblica da vida normal do cristão normal. 1

A comunhão no sofrimento de Cristo

No Novo Testamento, muitas das referências que falam sobre sofrimento dizem respeito especialmente ao sofrimento de Jesus. Há um forte sentido em que estes sofrimentos são exclusivos de Jesus. Somente ele poderia sofrer ou morrer pelos pecados do mundo. Somente ele, Deus perfeito e homem perfeito, poderia sofrer em nosso lugar para pagar a penalidade que merecíamos pagar. Nesse sentido, Jesus sofreu para que os crentes não tivessem de passar por esse sofrimento. Porque ele suportou a ira de Deus contra a nossa rebelião, aqueles que creem nele nunca terão de enfrentar essa ira. Nenhum crente jamais sofreu para compensar qualquer de seus erros aos olhos de Deus. A morte expiatória de Jesus é totalmente suficiente para pagar todos os pecados de todas as pessoas que crerão nele, em todos os lugares, em todo o tempo. Nada pode ser acrescentado a essa morte.

No entanto, a Escritura nos diz que aqueles que creem em Cristo estão agora, eles mesmos, “em Cristo”. Por meio da habitação do Espírito, os crentes possuem agora uma união íntima com Jesus. Muitas bênçãos maravilhosas fluem para o povo de Deus por meio desta união com o seu Salvador. Esta mesma união os une também com o contínuo sofrimento dele no mundo, não como obra de expiação, e sim como a experiência de oposição do mundo ao amor e à santidade dele. Parte do que significa estar “em Cristo” é compartilhar da comunhão de seus sofrimentos. Paulo une o conhecer a Cristo e o poder de sua ressurreição com o compartilhar de seus sofrimentos, como se estas duas coisas fossem inseparáveis (Fp 3.10). Paulo disse aos cristãos de Corinto: “Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio de Cristo” (2 Co 1.5). Pedro ecoou este mesmo tema, ao dizer: “Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando” (1 Pe 4.13). Em Romanos 8.17, Paulo chegou ao ponto de dizer que os crentes são “herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados”. Sofrer com Cristo é tão intimamente conectado com o gozo final de sua glória, que as duas coisas não podem ser separadas. A menos que Paulo tenha negado o que dissera em outra passagem, isto não pode significar que estes sofrimentos são, de algum modo, salvadores. Mas isto parece demonstrar que sofrer com Cristo é uma parte tão normal de estar em Cristo, que Paulo não podia conceber uma coisa sem a outra.

Em Colossenses 1.24, Paulo disse: “Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja”. É impressionante ouvirmos Paulo falar sobre algo que faltava nas aflições de Cristo, até que compreendemos que a palavra que ele usou nesta passagem nunca é usada a respeito do sofrimento expiatório de Jesus. Paulo não disse que estava contribuindo para a obra salvadora de Cristo em morrer por nossos pecados. Antes, esta aflição de Cristo é sua experiência, em união com seu corpo na terra, da aflição deles como seu povo em um mundo hostil. Aparentemente, há uma plena medida dessa aflição que será experimentada pelo povo de Deus antes do fim desta era; e Paulo viu seu próprio sofrimento como algo que contribuía para essa medida. A intimidade da união de Cristo com seu povo é tão profunda, que os sofrimentos deles são de Cristo, e os sofrimentos de Cristo são deles.

Isto significa que cristãos confortáveis e prósperos do Ocidente devem sair por aí e tentar provocar perseguição ou afligir intencionalmente a si mesmos com práticas ascéticas? Não. O ascetismo é inútil como um instrumento de santificação (Cl 2.23), e os crentes não são ordenados a buscarem perseguição. No entanto, a condição deles deve alarmá-los. É perigosa e anormal. Eles precisam especialmente acautelar-se das seduções da respeitabilidade e da prosperidade. Precisam acautelar-se da idolatria sutil de fazerem de Jesus um meio para obterem seu próprio gozo desta vida. Precisam acautelar-se do mundanismo de colocarem seu coração nas coisas deste mundo e valorizarem possessões, saúde e segurança mais do que a glória de Cristo. Precisam examinar a si mesmos com honestidade e verificar constantemente se o desejo de manterem seu estilo de vida os seduziu a comprometer de alguma maneira a sua obediência. Precisam cultivar a mentalidade de prontidão para perder qualquer coisa e tudo, quase imediatamente, por causa do supremo valor de Cristo. Riqueza e segurança são condições perigosas nas quais um discípulo de Jesus e aqueles que vivem nelas precisam exercer cuidado especial. A condição normal de um seguidor de Cristo é participar da comunhão dos sofrimentos dele, e os que não fazem isso precisam sempre perguntar a si mesmos por que não o estão fazendo.

Sofrimento e o avanço do evangelho

Promover o avanço do evangelho é um empreendimento perigoso. Aqueles que levam a luz de Cristo às trevas de um mundo rebelde parecem experimentar um nível intensificado de sofrimento. Isto foi certamente uma experiência de Paulo. Bem no começo da vida cristã de Paulo, quando Ananias lhe foi enviado em Damasco para restaurar-lhe a visão, Deus ligou uma descrição de sua chamada missionária com estas palavras: “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome” (At 9.16). Paulo entendeu esta ligação e a expressou a Timóteo no final de sua vida, ao descrever o evangelho e dizer sobre ele: “Para o qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre e, por isso, estou sofrendo estas coisas” (2 Tm 1.11-12). Para que ninguém pense que esta conexão entre sofrimento e serviço do evangelho era exclusiva dos apóstolos, Paulo aplicou-a também a Timóteo, dizendo: “Participa dos meus sofrimentos como bom soldado de Cristo Jesus” (2 Tm 2.3). Na verdade, esta conexão era tão íntima, que Paulo usou a expressão “participa comigo dos sofrimentos, a favor do evangelho”, onde o contexto indica claramente que ele falava sobre participar da obra do evangelho (2 Tm 1.6-9).

Este padrão tem permanecido até ao presente. Aqueles que têm levado o evangelho a lugares onde ele nunca foi ouvido antes têm sido, sempre, alvos especiais de oposição e sofrimento. David Garrison, em seu livro Church Planting Movements (Movimentos de Plantação de Igreja), lista o sofrimento de missionários como uma das principais características na maioria dos lugares em que Deus tem agido de maneiras extraordinárias. 2 Isto não deve surpreender-nos. O mundo, o Diabo e a nossa própria carne se opõem, todos, à obra de Deus. Aqueles que levam o evangelho a lugares em que Cristo ainda não é conhecido têm de fazer isso com seus olhos abertos para o que possa vir adiante. Além disso, a igreja no Ocidente tem de abraçar a verdade de que o evangelho é digno de qualquer preço que Deus pede que paguemos e tem de abandonar sua aversão instintiva ao desconforto e ao perigo. A Grande Comissão não será cumprida sem sofrimento. 3 Se uma parte do corpo de Cristo demonstra que não está disposta a pagar qualquer tipo de preço, Deus os deixará de lado e usará aqueles cujos valores estão mais em harmonia com os valores dele.

Cosmovisão Bíblica e Sofrimento

Até aqui esta discussão têm sido um tanto sombria. Tudo isto significa que o cristianismo bíblico é algum tipo de ascetismo melancólico? De modo nenhum! Como disse C. S. Lewis, Deus é um hedonista no coração. 4 Há prazeres eternos à sua mão direita (Sl 16.11). A vida cristã é uma questão de “alegria indizível e cheia de glória” (1 Pe 1.8). Mesmo quando fala sobre os sofrimentos de Jesus, a Bíblia nos diz que ele suportou a cruz “em troca da alegria que lhe estava proposta” (Hb 12.2). O cristianismo bíblico não valoriza o sofrimento por si mesmo. A atitude cristã para com o sofrimento é uma questão de sistema de valores transformado. Por causa do verdadeiro tesouro, o crente está disposto a renunciar as coisas menores, como possessões, conforto temporal e segurança ou até a esta vida. A realidade não é o que você perde. A realidade é o sobrepujante valor do que você ganha.

Paulo resumiu sua perspectiva em sua carta aos cristãos de Filipos. No contexto em que Paulo falou sobre a possibilidade de ser executado por causa de sua fé, ele disse: “Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1.21). Seu maior tesouro nesta vida era conhecer Cristo. O benefício ganho na morte era o estar com Cristo, o que Paulo considerou melhor do que qualquer coisa que esta vida poderia oferecer (Fp 1.23). Em qualquer circunstância, Cristo é tudo. Ele é o tesouro escondido no campo que é digno de vendermos tudo para obtê-lo (Mt 13.44). Ele mesmo é a coisa mais preciosa que já existiu nesta terra. É a verdadeira vida, a verdadeira alegria, a verdadeira paz, a verdadeira satisfação. Em Cristo, o crente tem perdão do pecado, novo nascimento, reconciliação com Deus, adoção na família de Deus, o dom do Espírito Santo, transformação progressiva na imagem de Cristo e a garantia da vida eterna na alegria e glória infinitas da presença de Deus.  Este é o verdadeiro tesouro, é um tesouro que não pode ser perdido. Todas as coisas que o mundo valoriza – possessões, conforto, saúde e a própria vida – são coisas que todos, por fim, perderão. Que pessoa racional se apega, enquanto pode, a coisas que por fim perderá, às expensas de coisas de muito maior valor que ela nunca perderá? Vista da perspectiva de Deus, a pessoa verdadeiramente sensata é aquela que suporta quaisquer perdas temporais que acompanham o tesouro genuíno e eterno. Quando os crentes assimilam o incrível valor de Cristo e de seu evangelho e o valor comparativamente menor e passageiro das coisas boas desta vida, podem ver com os mesmos olhos de Paulo, o qual, depois de tudo por que passou, escreveu: “A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas” (2 Co 4.17-18).

Evidentemente, o problema é que as coisas que podemos ver são imediatas e sedutoras, enquanto as que não podemos ver só podem ser assimiladas pela fé. Aqueles que têm muitas coisas boas que podem ver aqui têm frequentemente mais dificuldade para assimilar o valor superior das coisas que não podem ver. A maioria das pessoas prefere ter seu bolo e, também, comê-lo. Preferem gozar as coisas boas desta vida e as coisas melhores da vida por vir. Contudo, em sua sabedoria, Deus sabe que não podemos servir a dois senhores (Mt 6.24). Ele não chama seus filhos a renunciarem todas as possessões e prazeres, assim como não nos ordena buscar o sofrimento por si mesmo. Tudo que ele criou é bom, incluindo possessões e prazeres usados corretamente. Deus chama os seus filhos a valorizarem aquilo que é infinita e eternamente valioso, acima daquilo que é menos importante e temporal. Deus os chama a investir sua vida nas coisas da vida por vir. Ele os chama a reconhecer que não pertencem a si mesmos, mas vivem somente pela graça e para a glória dele. Quando essa perspectiva é atingida, a chamada para suportar sofrimento por causa do evangelho deixa de ser notícias sombrias e se torna uma parte razoável de nossa chamada jubilosa em Cristo.

Os cristãos que têm assimilado a mentalidade da cosmovisão bíblica aceitam o sofrer por Cristo porque ele é intrinsecamente digno disso. Eles acharam em Cristo o maior tesouro do mundo, e em comparação com ele todas as atrações e confortos do mundo parecem esterco coberto de ouropel. Como Paulo, eles podem dizer com honestidade: “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3.8). As coisas deste mundo não são dignas de nosso sofrimento, mas Jesus é.

Benefícios do sofrimento

Vale a pena sofrer por Jesus porque ele é muito maior do que qualquer coisa que percamos em segui-lo. Além disso, há certos benefícios que vêm ao crente por meio do sofrimento. Um desses benefícios é que o sofrimento testa e demonstra se a fé é genuína ou não. Em sua parábola dos quatro solos, Jesus falou sobre aqueles que fazem uma aceitação superficial do evangelho, mas não aprofundam suas raízes. Quando a perseguição ou as dificuldades vêm, eles voltam atrás rapidamente, mostrando que sua fé nunca fora genuína (Mt 13.20-21). Por outro lado, falando aos crentes que haviam suportado sofrimento, Pedro disse: “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações, para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo” (1 Pe 1.6-7).

Outro benefício do sofrimento é que ele é um aliado na luta contra o pecado. Em sua primeira carta, Pedro também escreveu: “Ora, tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos também vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado” (1 Pe 4.1). O sofrimento não deve ser buscado, como o faziam os ascetas medievais, na esperança de que a autopunição intencional possa purificar o pecado. Entretanto, quando o sofrimento vem, ele é usado frequentemente por Deus para tornar Cristo mais atraente e tornar o mundo menos atraente e, assim, ajudar-nos na luta por santidade.

O sofrimento ajuda a moldar o caráter do crente na imagem de Jesus. Em uma passagem famosa, Paulo escreveu: “E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança” (Rm 5.3-4). Assim como o treinamento rigoroso molda o corpo de um atleta e o torna preparado para o esporte, assim também o sofrimento molda o caráter de um cristão e o torna preparado para o serviço do reino.

Por último, o sofrimento provê uma oportunidade para o crente experimentar o poder de Deus. Paulo mostrou ter compreendido isso, quando disse: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (2 Co 12.10). A força de Deus é supremamente maior do que a nossa, porém experimentaremos mais provavelmente essa força quando chegarmos ao fim de nossos próprios recursos e descansarmos somente nele.

Reagindo ao sofrimento

Como um cristão deve reagir quando o sofrimento lhe sobrevém? Primeiramente, não devemos ficar surpresos. “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo” (1 Pe 4.12). A cultura ocidental pode instilar a expectativa de que a vida deve ser fácil, mas a Bíblia indica claramente o contrário, especialmente para os cristãos. Não devemos ser surpreendidos nem confundidos pelo sofrimento. Deus nos instruiu que devemos esperá-lo.

Em segundo, devemos suportar pacientemente qualquer sofrimento que nos sobrevenha, sem comprometermos nossa integridade em Cristo. O Novo Testamento ressoa este tema repetidas vezes. Eis dois exemplos. Paulo disse a Timóteo: “Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério” (2 Tm 4.5). Pedro afirmou: “Porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus” (1 Pe 2.19). A nossa tentação carnal é fazer quaisquer comprometimentos que forem necessários para banir nosso sofrimento. Deus nos chama a suportar com paciência.

Em terceiro, devemos amar aqueles que nos perseguem e orar por seu bem-estar (Mt 5.43-47). Não devemos tomar vingança daqueles que erram contra nós (Rm 12.14, 17, 19-21). Tanto a nossa carne quanto o mundo ao nosso redor nos instigam a que vindiquemos a nós mesmos, mas devemos reagir aos instrumentos humanos de nosso sofrimento como Jesus reagiu, amando até as pessoas que o mataram.

Em quarto, devemos crer em Deus em meio ao nosso sofrimento e reagir por fazermos o bem proativamente. “Os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem a sua alma ao fiel Criador, na prática do bem” (1 Pe 4.19). A consequência de nosso sofrimento está nas mãos de Deus, e podemos confiar nele quanto a essa consequência. Deus pode nos libertar por levar-nos ao lar para ficarmos com ele, mas ele nunca nos deixará, nem nos abandonará. Nada pode tirar-nos de suas mãos ou separar-nos de seu amor. Nosso dever é pagar o mal com o bem. Devemos deixar as consequências com Deus e ser proativos em fazer a obra de seu reino em face de qualquer coisa que nos sobrevenha. Precisamos guardar-nos da tentação real de entrarmos no modo de sobrevivência e, em vez disso, permanecermos ativos na propagação de sua glória.

Devemos usar nossas experiências de sofrimento para confortar os outros que sofrem. Paulo abordou isto com alguma amplitude em 2 Coríntios 1. Em vez de tornar-nos apáticos ou insensíveis, o sofrimento deve nos tornar compassivos para com os outros em suas aflições.

Devemos fixar nossos olhos em Jesus (Hb 12.1-3). Esta talvez seja a reação mais essencial de todas. Nossa carne sempre recuará do sofrimento. O mundo sempre nos dirá que somos loucos por nos colocarmos no sofrimento, em primeiro lugar. Somente por mantermos uma perspectiva bíblica sobre o supremo valor de Jesus, seremos capazes de suportar com paciência o sofrimento, enquanto abençoamos nossos perseguidores, confortamos outros que sofrem e continuamos ativamente na obra do reino de Deus. Isto exige dedicação em oração e no estudo da Palavra de Deus. Também exige encorajar e desafiar outros no corpo de Cristo, a menos que estejamos involuntariamente separados dos outros crentes. Somente em Cristo o sofrimento pode não somente ser suportado, mas também transformado em algo que glorifica a Deus e nos faz bem.

Por fim, somos até ordenados a regozijar-nos. Pedro disse: “Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo” (1 Pe 4.13). Isto parece insensato para o mundo, mas foi a reação espontânea dos apóstolos, que se regozijaram por haverem sido considerados dignos de sofrer por causa de Cristo (At 5.41). Regozijo como este só pode surgir pelo poder do Espírito Santo, em mentes que compreenderam plenamente o valor supremo de Cristo, em vidas que têm seus olhos fixados habitualmente em Cristo. Somente nele, faz sentido regozijar-nos em meio ao sofrimento.

Conclusão

Um artigo como este é difícil de ser escrito. Se eu dei a impressão de que já fiz tudo que recomendei aos outros neste artigo, esta é realmente uma impressão errada. Comparado com meus irmãos e irmãs na igreja perseguida, eu não sofri ainda. Ainda acho intimidante a perspectiva do sofrimento e da perseguição. No entanto, com base na leitura da Palavra de Deus e com base em conversas com outros irmãos que suportaram muito mais por causa do reino de Deus, aprendi uma coisa. Deus nos dá graça quando ela é necessária. “Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb 4.16). Ele não a dá necessariamente antes do tempo. Deus não me dá graça agora para que eu precise enfrentar algo que pode ou não acontecer-me no futuro. Todavia, no momento de necessidade, ele é sempre fiel. Nessa confiança, precisamos repudiar os temores de nossa carne e as mentiras do mundo e suportar o sofrimento como bons soldados de Jesus Cristo.

Bibliografia

1 – Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento à luz do reino de Deus, ver John Piper e Justin Taylor, eds., Suffering and the Sovereignty of God (Wheaton: Crossway, 2006).
2 – David Garrison, Church Planting Movements (Midlothian, VA: WIGTake Resources, 2004), 235-38.
3 – Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento e o avanço do evangelho, ver John Piper, Let the Nations Be Glad: The Supremacy of God in Missions, 3rd ed. (Grand Rapids: Baker, 2010), 93-131; e J. Dudley Woodberry, ed., From Seed to Fruit (Pasadena: William Carey, 2008), especialmente o capítulo 24.
4 – C. S. Lewis, Screwtape Letters (San Francisco: HarperCollins, 2001), 118.


Autor: Zane Pratt

Zane Pratt é o decano da Escola de Missões e Evangelismo Billy Graham e professor associado de missões cristãs. Pratt serviu como plantador de igreja e pastor nos EUA, além de ter servido como capelão no Exército antes da nomeação para o serviço no exterior em 1991. Ele viveu e trabalhou na Ásia Central até 2011, os últimos 10 anos em que tinha responsabilidades de liderança regional. Zane já escreveu vários artigos sobre teologia de missões.

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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