sábado, 20 de abril

Calvino e a estética

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Muitos entre nós quando ouvem a palavra “estética” logo a associam a salões de beleza, cirurgias plásticas, dietas de emagrecimento e outras coisas do gênero. As razões para isso são bem óbvias e amplamente debatidas. Alguns sugerem que este fenômeno crescente e esmagador da “neura estética” parece refletir, entre outras coisas, um esforço de construção da identidade, uma saída do anonimato e busca pela visibilidade, numa sociedade em que tudo é um espetáculo e na qual visibilidade e poder andam de mãos dadas. Esta discussão é certamente ampla e abrangente e possui várias nuanças que não temos o propósito de abordar aqui.

Para os que não foram introduzidos a este campo de estudo, precisamos dizer que a palavra estética tem a ver com as nossas concepções do que é belo. Assim como todos nós temos concepções do que é verdadeiro e do que é bom, assim também possuímos concepções sobre o que é belo. Portanto, todo ser humano tem um senso estético, quer tenha refletido ou não sobre esse senso.

Podemos dizer que neste sentido mais amplo todo ser humano é um esteta, pois reage de alguma maneira à beleza, projeta sua idéia de beleza em situações concretas, tem suas emoções e sentimentos despertados pela beleza; enfim, a sua vida e criatividade expressam inevitavelmente suas noções estéticas. Isso se vê em todo o tempo: desde atitudes triviais (como, por exemplo, escolher uma roupa para vestir) àquelas de maiores impactos em nossa vida diária (como a planta e o projeto da casa em que moramos). Atinge também aquelas decisões mais cruciais da vida (como, por exemplo, a escolha de nosso cônjuge). Talvez você replique dizendo que, em algumas dessas escolhas, nos orientamos mais por critérios práticos, pragmáticos, utilitários ou por valores morais e espirituais. Você está certo, até certo ponto. Entretanto, precisamos dizer que, se de alguma maneira você toma uma decisão que prioriza, por exemplo, o moralmente bom em lugar do corporalmente belo, você está, em tal decisão, expressando necessariamente um valor estético.

Isso logo nos diz que a Estética é uma área da Filosofia em que as reflexões sobre o belo e a beleza acontecem. Alguns filósofos separam uma seção da sua obra para tratar desse tópico, decididamente; outros, não o fazem. Porém, mesmo nesse último caso, quase sempre é possível estudar a estética daquele pensador de forma dispersa no conjunto de sua obra.

Avançando um pouco mais, podemos dizer que os ensinos de Jesus Cristo, assim como todo o ensino e literatura bíblica, expressam uma estética. Quando se diz no livro de Provérbios: “Enganosa é a graça, e vã, a formosura, mas a mulher que teme ao Senhor, essa será louvada”; ou quando o sábio recomenda ao seu filho não cobiçar no coração “a formosura da mulher vil”, temos nessas declarações um valor estético refletido claramente. O mesmo acontece quando o salmista nos exorta a adorar o Senhor “na beleza da sua santidade” ou quando diz que pediu ao Senhor: “Que eu possa morar na Casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor”; ou quando o profeta Isaías, antecipando o estado de humilhação de Cristo, diz: “Olhamolo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse”. Creio que todos os que se lembram do relato da criação, no livro de Gênesis, podem recordar que, ao final de sua obra de criação, “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”. Uma consulta ao adjetivo no original hebraico nos informa que, nesse versículo, a idéia de bom expressa (ou no mínimo inclui) uma idéia estética. Cada pormenor dessa obra de Deus foi declarado como “bom”, e o conjunto todo, como “muito bom”. Em seu comentário desse versículo, João Calvino diz que “podemos saber que na simetria das obras de Deus há suprema perfeição, à qual nada pode ser adicionado”. O salmista expressa musicalmente o seu encanto pela criação de Deus quando exclama: “Que variedade, Senhor, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste”.

A Estética analisa o complexo das sensações e dos sentimentos, investiga sua integração nas atividades físicas e mentais do homem, debruçando-se sobre as produções (artísticas ou não) da sensibilidade, a fim de determinar suas relações com o conhecimento, a razão e a ética. O estudo da estética tem sido particularmente importante quando se considera as artes, pois a disciplina é a base teórica da crítica da arte. As artes refletem as noções ou valores estéticos de seus criadores.

Na arquitetura, pintura, cinema, música, enfim, nas artes em geral, vê-se uma busca pela retratação da beleza, ou uma renúncia formal dela, ou um posicionamento do artista em relação a um modelo estético vigente.

Nesse sentido, a obra de arte nunca é neutra, esteja ou não o artista consciente desse fato. A história da arte, seccionada em períodos, revela que em determinada época ou geração um modelo de estética prevaleceu.

A noção clássica de estética, como se viu na educação grega, girava em torno da kalokagathia, isto é, da idéia de uma convergência do valor estético com os valores éticos (utilidade social e política) da comunidade.

Portanto, a estética clássica, como se vê em filósofos como Platão, por exemplo, associa espontaneamente o belo e o bem. Disso deriva-se o termo grego kalokagathia.

Esse conceito origina-se da expressão kalos kai agathós, que significa, literalmente, belo e bom ou belo e virtuoso. Portanto, o esteta clássico compreende um vínculo natural entre o belo e o bom e, porque não dizer, também, o verdadeiro. Para ser bom e belo, é preciso ser verdadeiro; e as buscas desses ideais estariam interrelacionadas.

Com o advento do cristianismo (e, para o nosso foco aqui, particularmente em sua introdução no Ocidente), a beleza é associada à idéia de revelação e à perfeição de um Deus Criador ou de uma ordem cósmica preestabelecida. Pela época da queda de Roma, Agostinho podia orar: “Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo que é verdadeiro.

Deus Sabedoria, em quem, por quem e mediante quem têm sabedoria todos os que sabem… Deus Bondade e Beleza, em quem, por quem e mediante quem é bom e belo tudo o que tem bondade e beleza”.

Ele se indagava na Confissões: “Que amamos nós que não seja belo? Que é o bem? E que é a beleza? Que atração é essa que nos liga a objetos de nossa afeição? Se não tivessem encanto nem beleza, não causariam nenhuma impressão sobre nós”. E lemos de forma dispersa em suas obras:

Eu amava as belezas terrenas e caminhava para o abismo… Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas… Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem… Tuas obras te louvam para que te amemos. A natureza dá glória a seu Artífice. Ó Sapiência, luz suavíssima da mente purificada! Ai dos que te abandonam como guia e se extraviam nos teus vestígios! Ai dos que, em vez de ti, amam os teus acenos e esquecem o que tu insinuas! Não cessas efetivamente de nos insinuar quem e quão grande és, e são acenos teus toda a beleza das criaturas. Na verdade, também o artífice, a respeito da própria beleza da obra, insinua de algum modo a quem contempla em sua obra, que não fique todo preso a isso, mas percorra de tal modo, com os olhos, a beleza do corpo executado que vá, com o afeto, até junto de quem o executou. Quanto aos que, em vez de ti, amam as obras que tu realizas, assemelham-se aos homens que, ao ouvir algum sábio de eloqüência notável e escutar com excessiva avidez a suavidade da sua voz e a disposição das sílabas, devidamente colocadas, perdem de vista a primazia dos pensamentos de que essas palavras tinham vibrado como sinais.

Agostinho, entretanto, é moderno em um aspecto. Não há dúvida de que, para ele, o Belo é belo, e o Feio é feio… Nesse sentido, quando Agostinho fala de Beleza, está falando, em rigor, do Belo. No entanto (e isto introduz uma nova tensão na estética agostiniana), Agostinho revelouse bastante atento à distinção entre a Beleza em geral e o Belo apenas clássico. Uma contribuição valiosa que Agostinho trouxe à Estética foram suas reflexões sobre a presença do Mal e do Feio no campo estético. Os pensadores gregos identificavam o Belo com a Beleza, considerando-o a única forma legítima de Beleza. A beleza é o belo puro. Agostinho, porém, aprofunda a fórmula da unidade na variedade, levando-a às conseqüências últimas; isto é, ele diz que a variedade não abrange somente as partes belas de um todo.

A Reforma produziu impactos indubitáveis sobre a arte e a estética de seu tempo. Isso porque há uma visão fundamentalmente nova da fé e da maneira como o ser humano se entende como tal. Infelizmente, o curto espaço aqui não nos permite uma exposição mais ampla e satisfatória.

Não é possível, por exemplo, traçar o contraste que se operou como fruto da reação protestante/ reformada ao padrão estético católico medieval. Devemos dizer, porém, que, por suas idéias revolucionárias para a época, tanto Lutero quanto Calvino foram tachados de iconoclastas, e disseminou-se o (mau) entendimento de que a fé reformada não admitia a arte. Tais idéias não correspondem à verdade. A arte luterana no campo da música tem representantes de renome como Buxtehude, Bach, Häendel, citando apenas alguns exemplos… Tanto Dietrich Buxtehude quanto Johann Sebastian Bach foram empregados de suas igrejas como organistas e compositores.

João Calvino, que pertence à segunda geração do protestantismo, recebeu forte influência da estética agostiniana. O genial Calvino oferece-nos um legado bem rico e próprio. Para Calvino – indo diretamente ao coração da questão – a arte nos revela uma realidade mais elevada do que a realidade oferecida por este mundo pecaminoso. Alguns teólogos holandeses neocalvinistas, como Abraham Kuyper, têm salientado que o calvinismo compreendeu a influência horrenda e corruptora do pecado sobre a arte e que isso o levou a maior apreciação da natureza do Paraíso na beleza da justiça original. E, guiado por essa recordação encantadora, o calvinismo também profetizou uma redenção da natureza exterior, a ser realizada no reino da glória celestial. A partir desse ponto de vista, o Calvinismo honrou a arte como um dom do Espírito Santo e como uma consolação em nossa vida atual, habilitando-nos a descobrir em e atrás desta vida pecaminosa um pano de fundo mais rico e mais glorioso. Considerando as ruínas desta criação outrora tão maravilhosamente bela, para o calvinista a arte chama a atenção tanto para as linhas do plano original ainda visíveis quanto (e isto é ainda melhor) para a esplêndida restauração pela qual o Supremo Artista e Construtor Mestre um dia renovará e intensificará a beleza de sua criação original.
Convém destacar que uma grande diferença entre Lutero e Calvino foi a implementação prática do patrocínio da arte. Para Calvino a arte não deveria ser tutelada, sustentada economicamente pela religião. A arte, embora buscasse sua motivação no religioso, deveria ser sustentada e estimulada por recursos externos aos da igreja. Para o calvinismo, a religião deveria ser eminentemente logênica (privilegiando a palavra e a prédica) e investir financeiramente na capacitação teológica dos fiéis.

O investimento em arte, incluindo arquitetura, deveria advir de fontes outras. Enfim, com Calvino temos grande medida do início da arte “secular” que assistimos, sobretudo, no período contemporâneo. A igreja promove o culto; e o setor público e/ou “secular-privado” promovem a arte. Um exemplo ilustrativo deste modelo foi o período no qual Bach afastou-se da “música luterana” e foi para Köthen, onde trabalhou para o príncipe calvinista Leopold d’Anhalt-Köthen. Foram cinco anos frutíferos, embora Bach não houvesse composto música religiosa, ficando restrito à “música profana”.

Datam dessa época os “Concertos de Brandenburgo”, o “Cravo Bem-Temperado”, a maior parte de sua música de câmara e as suítes orquestrais.

Sob Calvino, se Deus é e continua sendo soberano, a arte não pode produzir nenhum encantamento, exceto de acordo com as ordenanças que Deus estabeleceu para a beleza, quando ele, como o Supremo Artista, chamou este mundo à existência.

Após a Criação, Deus viu que tudo era bom. A beleza existe por si mesma, na condição de criação divina, e Deus a percebe, tanto espiritual como corporalmente, desde o momento da criação. Um artista pode observar isso em si mesmo.

Se ele compreende que sua própria capacidade artística depende de ter um olho para a arte, deve necessariamente chegar à conclusão de que “o olho” original para a arte está no próprio Deus, cuja capacidade para produção artística é plena, e segundo essa imagem foi feito o artista entre os homens.
É equivocada, portanto, a idéia de que Calvino teria se posicionado contra as artes em geral; e comumente essa idéia é parcial ou unilateral.

O reformador francês considerava formas de arte como dons de Deus a nós. Os objetivos da arte, segundo Calvino, são glorificar a Deus e trazer o bem ao homem. A arte é um presente do Criador às suas criaturas.

O posicionamento de Calvino possibilitou a criação de toda uma nova ordem artística. Na Holanda, por exemplo, com a libertação do jugo espanhol e, por conseqüência, da Igreja Católica, houve um crescente mercado de retratos entre a classe burguesa local. Os artistas, como não havia mais o suporte financeiro da Igreja Católica, começaram a trabalhar para a burguesia.

O maior expoente na pintura nesse período foi Rembrandt, membro da Igreja Reformada Holandesa, cujo pai era calvinista. Apesar de ter produzido pinturas sacras, Rembrandt as fez por convicção e motivação própria, e não a fim de serem vendidas para a Igreja.

Com relação à música e à liturgia protestante, buscou-se fazer sentir no culto seu desejo de reforma na Igreja. Em Calvino, o desejo foi o de uma reforma radical, buscando a construção de uma nova igreja, resgatando, da igreja apostólica, elementos perdidos nos desvios ao longo da história e preservando somente o que não se teria corrompido.

Nos atos litúrgicos, os calvinistas não fogem às implícitas demandas teológicas do seu brado reformado Soli Deo Gloria (“Glória somente a Deus!”). Calvino acreditava que a música possuía o poder de inflamar o coração humano com zelo espiritual, trabalhando-o para essa finalidade.

Ele recrutou músicos para a Igreja de Genebra e os colocou a trabalhar na produção de novas melodias para acompanharem os salmos. Para ele havia dois tipos de oração: a falada e a cantada. Calvino restaurou o canto com acompanhamento da melodia e da harmonia voltadas para o canto congregacional. Ele acreditava que o ponto central da música na igreja era primeiramente o conteúdo cantado; a música era direcionada à congregação e devia ser simples, sem exigir treinamento ou habilidade teórica daquele que cantaria em uníssono na igreja.

As “igrejas” protestantes demonstraram grandes diferenças arquitetônicas que provieram da teologia.

No século XVI, as igrejas e catedrais construídas durante a Idade Média eram góticas. Nessas igrejas, pilares sustentam o alto teto de pedra, os arcos têm forma alongada e o interior é iluminado por grandes janelas adornadas com vitrais. O teto alto e os arcos alongados despertavam nos fiéis um sentimento de submissão. Quanto mais alto o teto, mais distantes do céu e de Deus as pessoas se sentiam. E a arquitetura da igreja era pensada justamente para estimular esse senso de grandiosidade e de reação. Quando uma igreja católica era transformada em protestante, as imagens eram retiradas, pois os protestantes não praticam a chamada “veneração dos santos”.

Também era retirado o altar, que nas igrejas católicas é utilizado para a celebração da missa com seu centro eucarístico. Nas igrejas protestantes, no lugar do altar podia ser colocado um órgão. O púlpito, que nas igrejas católicas tinha menor destaque, se transformava em lugar central, onde o pastor fazia a leitura da Bíblia e a expunha. Assim, a arquitetura das igrejas calvinistas procura ser fiel à sua teologia, pois dá ênfase à Palavra; não é mais um lugar para contemplação submissa, e sim um local de verdadeira comunhão do homem com Deus.

Muitos criticam o fato de as igrejas protestantes serem tão despojadas, tão simples, tão sem ornamentos.

Calvino pensou na arquitetura dessas igrejas como um ambiente que não produzisse distrações, a fim de que a Palavra de Deus fosse o centro de toda a atenção, pois era o que se tinha de mais importante. Podemos dizer que com o calvinismo há um esforço de regresso à essência, em lugar da aparência barroca das cortes católicas.
O ambiente das igrejas reformadas induz a atenção da congregação ao que o pregador diz. As “igrejas” também não tem mais aqueles pés direitos altíssimos, góticos, sugerindo a pequenez do homem frente a Deus.

Depois de Calvino, a igreja reflete um ambiente no qual aquele que crê pode estar em comunhão com um Deus próximo, sem necessidade de intermediários. Há uma sensação de acolhimento, de conforto na fé. E, se há algum ponto em que o barroco católico colonial e o estilo reformado calvinista convergem, é justamente este, a saber, o senso de acolhimento e de proximidade. Porém, o barroco católico impôs-se pela arte, especialmente por meio da arquitetura, pintura, escultura… na exuberância sensorial e na liturgia rebuscada. Já o modelo calvinista buscou impor-se à consciência do fiel com a centralidade da Palavra e a simplicidade do culto.

Em nosso contexto, quando estamos presenciando o fenômeno da explosão sensorial e artística do culto evangélico brasileiro, em que o “verbo” vem crescentemente cedendo lugar à “imagem”, uma reflexão sobre o legado estético calvinista pode oferecer algumas referências cruciais, tanto no que tange ao diagnóstico quanto no plano prático da ação litúrgica.


Autor: Gilson Santos

Gilson Santos é Ministro Batista e pastor titular da Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos, SP, há mais de 20 anos. Graduado em História, Teologia e Psicologia, é pós-graduado em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É escritor no institutopoimenica.com e professor de disciplinas de Teologia Prática no Seminário Martin Bucer.

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